Em 01/05/2022
Por
Alex Brito
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) divulgou dados estarrecedores sobre o nível de preços dos alimentos no Mundo. Segundo essa agência e o Fundo Monetário Internacional (FMI), o conflito bélico no leste europeu, provocado pela invasão da Ucrânia pela Rússia, precipitou a elevação do preço da comida (medido pelo FAO Food Price Index) para patamares superiores aos últimos 100 anos!
Desde 1974, quando o índice havia registrado a maior alta em 60 anos, de pouco mais de 137 pontos, o nível de preços mundial dos alimentos vinha apresentando queda, pelo menos até 1987, ocasião em que chegou a medir 67 pontos. Até então, foi um período importante onde tivemos um processo de barateamento sistemático da comida em escala mundial. A partir daí, contudo, passamos para uma trajetória de contínua alta, até chegarmos ao ano de 2011, com o índice medindo, aproximadamente 119 pontos. Os últimos seis anos dessa fase são, excepcionalmente, marcados por uma abruta elevação do custo da comida decorrente, principalmente, do grande boom de comodities, cujo aumento acumulado chegou a quase 50% nesse período. Desde então, houve um percurso rápido de queda dos preços, estacionando nos 94 pontos, em 2018. A pandemia acelerou o aumento do valor da alimentação, elevando o patamar de preços para 125 pontos em 2021. E o atual conflito precipitou a escalada desses custos para 159 pontos (em março de 2022)! Esse último estágio supera o pico de preços observados durante a Segunda Grande Guerra (1939 a 1945) e na primeira crise do petróleo (1973-1974).
Não se trata de uma elevação de preços desinente de escassez de gêneros alimentícios, pelo contrário, a safra mundial de grãos cresceu 1% em relação ao ano anterior e os estoques subiram 2%, o que deveria fazer os preços caírem, mas não é o que está ocorrendo. Na verdade, esse choque é função da desarticulação da cadeia de comércio global, que vem dificultando as transações internacionais (principalmente no tocante aos fretes e à cadeia de distribuição), nas quais Ucrânia e Russa são fornecedores protagonistas.
A consequência mais imediata estamos assistindo: há um rápido processo de empobrecimento e de insegurança alimentar. Para se ter uma ideia: no final de março deste ano, a pesquisa Datafolha já informava que 25% dos brasileiros afirmavam que os suprimentos disponíveis nos últimos meses foram inferiores ao necessário para alimentar a família e no estrato dos domicílios com ganhos de até R$2.424,00, 35% já acusavam a falta de comida. Adicionalmente, enfrentamos, também, o choque sobre o preço dos combustíveis, que puseram fogo à capacidade de compra do brasileiro. Não é demasiado lembrar que embora o Brasil não seja o lugar da gasolina mais cara, é, sim, indubitavelmente, um dos lugares onde o impacto desse aumento dilacerou, como nunca visto antes, as condições de existência de amplas camadas da população brasileira, a razão é óbvia: a participação do combustível no orçamento doméstico das famílias que ganham até 1 salário mínimo exacerbou em mais de 30% (computando apenas 1 tanque de gasolina de 50 litros), enquanto nos Estados Unidos e em Israel, por exemplo, esse impacto foi de 3% e 6%, respectivamente.
O que resta disparatado, para ser elegante, é que as contas públicas federais vão “de vento em popa”, evidentemente pelas peculiaridades das implicações desses fenômenos sobre a economia brasileira. Mas não tão clara é a postura dos que fazem a política econômica, em particular a fiscal, que insistem em considerar o princípio apriorístico das finanças saudáveis em detrimento das finanças funcionais, que não vê outro sentido às finanças públicas que não seja servir de instrumento a consecução do resultado econômico (reduzir a inflação, o desemprego, a fome, a miséria, aumentar a renda, o produto, entre outros), afinal a economia não é um fim em si mesma. Como entender a passividade da política econômica enquanto a população regride aos mínimos civilizatórios?
Houve um tempo em que lutávamos pela evolução do espírito humano, para além do atendimento das necessidades básicas, que lutamos hoje. Hão de se lembrar: em 1987, curiosamente no final do ciclo de queda dos preços mundiais dos alimentos, aqui no Brasil aparecia o hit “Comida”, composição de Arnaldo Antunes, Sérgio Brito e Marcelo Fromer da banda de rock Titãs, que reivindicava o direito à vida em sua plenitude e se recusava a uma existência só “pela metade” em que a vida se limitava ao atendimento imediato às necessidades básicas da reprodução física. A vida em sua totalidade deveria cuidar além dessa necessidade, também do desejo e da vontade, do corpo e do espírito, talvez porque, como bem falou o ilustre poeta maranhense Ferreira Gullar, ao ser indagado do porquê da arte, de pronto respondeu: por que A VIDA (do atendimento às necessidades básicas) NÃO BASTA!
Indiscutivelmente, as transformações econômicas impostas nos últimos anos solaparam a dignidade de uma existência nos parâmetros mínimos de civilidade, que pudessem impedir o embrutecimento da vida. Se antes a luta era pelo direito à arte, à cultura, à vida em sua plenitude, definitivamente, o inimigo agora é outro: trata-se de garantir, urgentemente, o que nós havíamos pensado que tínhamos, o acesso a comida, segura e saudável!
Publicado originalmente no Jornal O Imparcial – Cad. Opinião, pág. 5, São Luís, sábado e domingo, 1º de maio de 2022. https://banca.oimparcial.com.br/oimparcial/2022/04/50486/