Como morrem os pobres

Em 06/06/2021

Por

Alex Brito

O título é do ensaio de 1946 do escritor inglês, nascido na Índia, George Orwell, que narra sua impressionante experiência vivida num hospital público em Paris, ao final da segunda guerra mundial. O ensaio chama atenção, principalmente, por descrever, em detalhes, o tratamento desumano dispensado aos mais pobres por uma sociedade, ou pelo menos parte dela, que se notabilizou pela noção universal de igualdade, fraternidade e liberdade. Ao falar da morte como uma experiência cotidiana, deixa claro que, embora o destino inevitável de todos, fosse um só, era, para os pobres, particularmente bem distinto e passava ao largo daquelas noções que pareciam comuns a todos.

Ao ser testemunha ocular do que era a vida dos menos abastados em situação de vulnerabilidade, não deixou dúvida: para Orwell, “[…] é melhor morrer violentamente e não muito velho. As pessoas falam sobre os horrores da guerra, mas que arma o homem inventou que se aproxima da crueldade de algumas doenças mais comuns? Morte “natural”, quase por definição, significa algo lento, fedorento e doloroso”. A “predileção” por uma morte violenta, brutal, típica, do confronto bélico, ao invés da chamada morte natural, desnuda a ignomínia da condição humana em situação de vulnerabilidade. Obviamente, o problema não é a morte em si, mas em quais condições se morre, particularmente para os mais pobres. Ou, dito de outra forma, como a situação econômica é capaz de distinguir até o que, por natureza, seria igual para todos.

O ensaio de Orwell é interessante não apenas pela constatação da forte associação entre a morte e as condições socioeconômicas, fato que o levou a “eleger” a morte violenta como mais razoável que a morte “natural”, mas também pelo testemunho enfático da política de saúde do seu país de origem, a Inglaterra. O excerto textual é claro: “Mas é fato que em nenhum hospital inglês se veem algumas das coisas que vi no Hospital X. esse negócio de pessoas morrendo como animais, por exemplo, sem ninguém por perto, ninguém interessado, a morte despercebida até a manhã seguinte […]. Isso certamente não se veria na Inglaterra, e ainda menos se veria um cadáver exposto à vista de outro paciente.”

A Inglaterra é um dos raros exemplos, assim como o Brasil, que possuem um amplo, abrangente, descentralizado e universal sistema de saúde público. Evidentemente, à época o renomado escritor não fazia referência a esse sistema, implementado dois anos após a publicação do referido ensaio. O autor fazia alusão à estrutura de saúde existente, que, à época, já contava com grande número de profissionais de saúde por habitante. Fato é que quando o National Health Service – NHS (o sistema de saúde inglês) começou a funcionar, em 5 de julho de 1948, nenhum novo hospital foi construído, nem centenas de novos médicos foram contratados. A diferença fundamental deu-se pelo acesso das pessoas menos abastadas aos serviços médicos proporcionados pela grande infraestrutura pré-existente.

Hoje, dada a crise econômica e de saúde pública provocada pela COVID-19, a associação entre as condições socioeconômicas e o óbito são muito mais estreitas. O Professor Dr. John Wildman, do Population Health Sciences Institute, do Reino Unido, analisando a relação entre as ocorrências de mortes e casos de COVID-19 e a desigualdade de renda nos países da OCDE, aponta que há uma associação significativa entre a desigualdade de renda e o óbito, estimando que o aumento de 1% no Coeficiente de Gini está associado a um aumento de 5% nas mortes por milhão de casos e de 4% nos casos por milhão de pessoas. A conclusão é fulcral: além dos fatores biológicos e médicos, os aspectos socioeconômicos, em particular, a desigualdade de renda, tem influência importante sobre os resultados da doença.

Soma-se a isso, especialmente, o problema do desemprego. No último 27 de maio, o jornalista e ex-deputado estadual, Luiz Pedro (falecido, inesperadamente, no dia 2 de junho), denunciava, conforme os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) a cifra alarmante de quase 15 milhões de desempregados no Brasil, ou seja, 14,7% de desempregados sem paralelo desde 2012. O número é aterrador, mas ainda não retrata a tragédia sobre o emprego no Brasil. Como a taxa de desocupação não consegue captar adequadamente o impacto sobre o emprego, o mais razoável seria observar a taxa composta da subutilização da força de trabalho. Assim, por esse indicador, no Brasil o problema do desemprego já atinge impressionantes 29,7% da força de trabalho ampliada e no caso do Maranhão, 47,3%, a segunda maior taxa do nordeste. Isso mesmo, quase 1 em cada 2 maranhenses que estão na força de trabalho ampliada já se encontram sem empregos.

A severidade com que os fatores socioeconômicos agravam as experiências comuns do cotidiano individual, como a enfermidade e a própria morte, deslocam essas experiências do espaço natural da condição humana. Não se trata mais de uma questão atinente ao indivíduo, ou a sua dor (talvez nunca tenha sido), trata-se de uma questão de Estado.

Publicado originalmente no Jornal O Imparcial, 06/06/2021.

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