Em 05/05/2021
Por
Alex Brito
Em Wall Street sempre foi muito comum a expressão “Don’t fight the FED” (“Não lute contra o FED”, o banco central dos Estados Unidos). O jargão, típico do mundo financeiro, já serviu para muitas das posições de política monetária americana ao longo dos últimos 50 anos. Na década de 70, significava a necessidade de elevar as taxas de juros para combater a inflação; do crash de 1987 até 2007, exprimia a necessidade de baixar a volatilidade por meio da manutenção de taxas estáveis para garantir o crescimento econômico e o pleno emprego; e, após a crise de 2008, dadas as perturbações econômicas mais pronunciadas, a expressão era usada para defender taxas ainda mais baixas por mais tempo. Mas o fato é que a posição, irretorquível, do FED não possibilitava outra reação, ao sistema financeiro, que não fosse a aceitação da política. Enfim, não adiantava lutar contra o FED.
Esse jargão é extremamente representativo do poder que carregam os emprestadores de última instância. Portanto, quando tomamos emprestado a expressão idiomática e afirmamos no título deste artigo, Don’t figh the Banco Central (BC), o que de fato queremos perguntar é quem pode enfrentar um BC com mais de US$350 bilhões em reservas? A pergunta é relevante por que a resposta, óbvia, contesta a condução da atual política monetária de elevação dos juros, iniciada em março, quando o BC elevou a taxa selic de 2% para 2,75% (a primeira elevação desde 2015) e que, provavelmente, continuará por meio das deliberações do Comitê de Política Monetária (COPOM) que serão tomadas hoje, 5 de maio.
Os argumentos que sustentam essa decisão estão associados: a aceleração inflacionária e a trajetória de alta da estrutura a termo da taxa de juros (juros de longo prazo) que, segundo alguns, podem significar a dificuldade de rolagem dos títulos públicos, o que caracterizaria um problema fiscal. Quanto ao primeiro, ainda que razoavelmente já estabelecido, é preciso recolocar ao debate o argumento de que as pressões inflacionárias não decorrem de choques de demanda. Em relação ao segundo, é importante discutir o poder que um banco central exerce na definição da taxa selic, juros de curto prazo, e na capacidade de influenciar a estrutura a termo da taxa de juros. É o que passaremos a fazer.
Sabe-se que pelo atual regime monetário (Regime de Metas de Inflação), a taxa de juros de curto prazo é o instrumento adequado para o controle da inflação quando se origina do aquecimento da demanda agregada. Incontestavelmente, não é o caso brasileiro há mais de uma década. Em todo esse período os preços sempre responderam aos choques de oferta (custos). Mais recentemente, as perturbações foram decorrentes do mercado internacional de comodities e da taxa de câmbio, mas antes eram pressionados pelo aumento real do salário-mínimo (principal custo do setor de serviços), por preços administrado e monitorados, regulados em contrato, e balizadores dos custos que afetam o nosso cotidiano (energia elétrica, plano de saúde, transporte interestadual, saneamento, telefone etc.) e que não eram (e não são) sensíveis à demanda!
No entanto, há quem ainda defenda a alta da taxa de juros mesmo reconhecendo que a demanda não é o detonador da pressão sobre o nível de preços. O argumento é que poderíamos atenuar o impacto sobre a inflação, ainda que esta fosse de custos, se a taxa de câmbio interrompesse a trajetória de elevação ou mesmo retrocedesse a algum patamar mais baixo, afinal boa parte do que vendemos no mercado doméstico tem, em sua composição, insumos importados, ou servem de alguma referência para os preços internos, como é o caso das commodities. Contudo, há dois importantes aspectos a considerar. O primeiro é a improvável redução da taxa de câmbio em situações de incerteza, onde não é possível calcular o risco que o fluxo de capital externo teria ao ser alocado em mercados emergentes, a não ser que o prêmio de risco subisse a patamares elevadíssimos.
Mas ainda que fosse possível atrair os fluxos de capital e reduzir a taxa de câmbio, mitigando a tensão sobre a inflação, provavelmente a estratégia seria contraproducente. Explico: considerando que se vive em um momento de incerteza peculiar, a tática privilegiada desses fluxos internacionais de capital seria (supondo o pagamento de um prêmio de risco) o tradicional carry-trade (tomar dinheiro a juros baixos e aplicá-lo a juros alto), o que, na verdade, voltaria a pressionar o câmbio em situações de refluxo de capitais.
O segundo é que se o objetivo é reduzir a volatilidade do câmbio, por que elevar os juros? Quem pode enfrentar um Banco Central assentado em mais de 27% do PIB em reservas internacionais? De fato, o BC poderia colocar a taxa de câmbio onde ele bem entendesse, por uma razão muito simples: não há nenhum agente financeiro, com envergadura suficiente, capaz de disputar a cotação do dólar com o BC. Evidentemente que não é necessário chegar a níveis que poderiam suscitar ataques especulativos desnecessários contra a moeda, mas é indiscutível o poder que o BC carrega de evitar a escalada da taxa de câmbio nas atuais condições! Mas vejam, não se está falando de “queimar” reservas, vendê-las, ou “intervir no câmbio”. É possível definir a taxa de câmbio apenas fazendo o que o BC sempre fez: operações de swap-cambial, garantindo a investidores um seguro em suas operações financeiras que os protejam da volatilidade cambial e de ataques especulativos.
E o “problema” fiscal? Existe? Não! Primeiro que países que devem em sua própria moeda não correm risco de insolvência porque são emissores soberanos da moeda fiduciária e, portanto, não “quebram”. Ao contrário de entidades subnacionais, a união não precisa arrecadar para pagar suas obrigações, ou seja, a dívida pública não é “paga” com tributos arrecadados da sociedade, além disso a dívida pública é totalmente líquida, ou seja, é quase uma moeda! Em segundo lugar, como a taxa de longo prazo é definida pelas instituições financeiras, fica claro a pressão para elevação das taxas de curto prazo.
Caso o governo, por meio do BC, quisesse mudar as expectativas e influenciar a estrutura a termo da taxa de juros (reduzindo os chamados juros longos) poderia, por exemplo, como já proposto por André Lara Resende, banqueiro e ex-diretor do BC, autorizar a autoridade monetária a recomprar toda ou parte da dívida de longo prazo com rendimento de 10% ao ano e pagar com reservas remuneradas à taxa Selic! Haveria negócio melhor para o próprio BC? Comprar um título que vale 10% ao ano e pagar com 2,75%? Poderia, também, definir a taxa de longo prazo, como faz o Japão. Nesse sentido o BC definiria as duas principais taxas da economia, a de curto e longo prazo. Alternativas não faltam. Afinal, seja qual for, don’t fight the Banco Central.
Publicado originalmente no Jornal O Imparcial, 05/05/2021.