Em 04/07/2021
Por
Alex Brito
Logo no início da pandemia do novo coronavírus, as estimativas mais divulgadas pelos organismos multilaterais restringiam-se aos aspectos macroeconômicos, principalmente os impactos sobre a flutuação no PIB (principal e mais cortejada variável agregada). Atualmente, para além dos impactos macroeconômicos, a análise dos principais resultados científicos internacionais é enfática ao postular que a pandemia tem feito e fará mudanças distributivas avassaladoras, alterando sensivelmente a distribuição de renda e o nível de pobreza, principalmente nas regiões mais desiguais.
Cada vez mais os resultados científicos apontam, com muita robustez, que os fatores socioeconômicos também são importantes determinantes do número casos e óbitos por milhão de pessoas da COVID-19. Desses fatores, a desigualdade de renda, parece ser a proxy que sintetiza a evidente correlação da doença com o status socioeconômico dos grupos populacionais. Por isso, é necessário que indicadores de desigualdade de renda sejam considerados no planejamento das políticas de enfrentamento à pandemia como fonte adicional de fragilidade e, também, como preditores de óbitos e de infecção pelo patógeno.
Esse resultado não é tão óbvio, como possa parecer a priori, já que, de imediato, a pandemia “reduziu” a proporção de pobres e desiguais, ao destruir milhões de empregos precários e de baixa remuneração e reduziu, também, os salários mais altos, via redução da jornada de trabalho (a pandemia “igualou por baixo”). A resposta política dos governos, por meio dos subsídios salariais, das transferências extraordinárias e da cobertura previdenciária ou do seguro social, atenuaram significativamente, em geral, o impacto sobre a renda, razão pela qual a trajetória regressiva dos indicadores de pobreza e desigualdade foram aplacados.
Acontece, porém, que o problema distributivo decorre da própria solução dada pelos governos. A suspensão ou retirada parcial das políticas que, de certo modo, blindaram a renda dos impactos regressivos da pandemia, provocarão alterações estruturais de longa duração. Embora o desemprego seja muito sensível às quedas do PIB, o contrário não é verdadeiro. A recuperação do emprego é extremamente lenta, ainda que o PIB tenha um crescimento vigoroso. Além disso, as ocupações informais demoram ainda mais a voltar aos níveis originais. Portanto, a desigualdade de renda e a vulnerabilidade social não serão atenuadas, mas ao contrário, serão ainda mais alargadas pelas consequências distributivas da COVID-19.
O desafio da pandemia consiste exatamente em como evitar isso. Já se sabe, por meio da produção científica internacional, que estruturas sociais mais inclusivas, com sistemas de saúde abrangentes e com elevado capital social e enraizamento comunitário são tecidos sociais mais suscetíveis à defesa da COVID-19, seja porque permitem respostas mais rápidas e eficazes sobre o nível de contágio, seja porque podem implementar medidas restritivas sem necessariamente obliterar toda a estrutura de rendimento, o que provocaria a inocuidade das medidas de prevenção, tornando-as, inclusive, contraproducentes.
Em sociedade menos inclusivas, como a nossa, o desafio colocado pela pandemia envolve, necessariamente, rediscutir a coordenação entre a política fiscal, a política de rendas e a de saúde pública. No primeiro caso, o caminho de consolidação fiscal adotado nos últimos anos é um instrumento que agrava a situação, principalmente em países com sistemas de proteção social pouco inclusivos e abrangentes. Será necessário repensar o modelo fiscal para elevar o gasto público com a infraestrutura de saúde pública, ou mais precisamente, o que vem se chamando de complexo industrial da saúde.
No que diz respeito à política de renda, não se trata apenas de ampliar a cobertura ou de redefinir os critérios de elegibilidade dos programas existentes. Será necessário discutir um patamar de transferência monetária que consiga afetar os indicadores de desigualdade de renda. Em simultâneo, será imprescindível fomentar a provisão de bens públicos de larga cobertura territorial. Como já se sabe, pelo acúmulo dos estudos proveniente das políticas públicas, o problema da desigualdade não se combate apenas com renda. Logo, é fundamental que essa política não colida com a provisão dos bens públicos em espécie, cuja oferta deverá crescer independente do patamar das transferências monetárias. Resta claro que não será possível enfrentar o desafio sem a coordenação dessas três políticas, o que exige repensar, no caso brasileiro, a política econômica vigente desde 1999!
Publicado originalmente no Jornal O Imparcial, em 04/07/2021.